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Constituição Cidadã: 30 anos depois

Incerteza sobre alimentação diminui, mas qualidade ainda preocupa

Editoria: Séries Especiais | Rodrigo Paradella | Arte: Helga Szpiz

13/11/2018 14h00 | Atualizado em 26/11/2018 14h19

Embora tenha sido acrescentada tardiamente à Constituição de 1988, o direito à alimentação também integra o rol de direitos sociais garantidos pelo texto, que completou 30 anos em outubro. A garantia passou a fazer parte da Carta Magna em 2010, mas o combate à fome, realizado nas últimas décadas, já estava alinhado ao espírito da redação original. Hoje, a incerteza sobre a disponibilidade de alimentos já não é realidade para a maioria dos brasileiros, mas a qualidade do que é ingerido ainda é uma importante preocupação.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

“Essa institucionalização veio coroar um ciclo de políticas de combate à fome que remontam a meados dos anos 1990 e ganharam força em 2003. Essas políticas, no seu ciclo inicial, acumularam alguns êxitos. Nunca tiveram a escala necessária para mudar a forma da alimentação, mas conseguiram, de fato, tirar o país do Mapa da Fome [relatório sobre o tema produzido pela ONU]”, explica o técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, Alexandre Arbex.

Segundo ele, as políticas públicas de transferência de renda ajudaram a reduzir a questão da falta de alimentos: “o primeiro lugar em que as famílias alocam recurso é na alimentação. Isso melhora o acesso ao alimento, mas, inicialmente, aqueles mais baratos, não necessariamente nutritivos. Os dados de segurança alimentar refletem isso”.

Já o gerente da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, André Martins, ressalta o aprimoramento nos dados de segurança alimentar ocorrido na última década. O conceito usado pelo IBGE em suas pesquisas corresponde à percepção da família em relação à possibilidade de falta de alimentos ou de redução na qualidade da dieta.

“Nos últimos anos, tivemos uma redução da percepção de insegurança alimentar [incerteza ou falta de alimentos]. Tivemos um percentual baixo de famílias que reportam insegurança alimentar grave [quando faltam alimentos até para as crianças da família ou há situação de fome]. A maioria se apresenta com segurança, em termos de percepção”, destaca André, que, no entanto, faz ressalvas à dieta do brasileiro.

“É importante observarmos o aumento da obesidade nos últimos 30 anos. Tivemos quase 60% das pessoas na condição de sobrepeso na Pesquisa Nacional de Saúde de 2013. Isso mostra que a população tem feito escolha de alimentos que extrapolam a quantidade de sódio, gordura e açúcar esperados. Se observarmos a POF, no estudo de consumo alimentar, você encontra elevados percentuais de ingestão desses nutrientes. É uma combinação perigosa para a saúde”, completa.

#praCegoVer Infográfico com os alimentos mais presentes na vida do brasileiro e a situação da segurança alimentar

Menos fome, mais obesidade

As más escolhas na hora da alimentação, entretanto, podem ter impactos negativos no futuro das pessoas e até mesmo custo extras para o Estado, ao ter que arcar com mais gastos com saúde. “A população não consome o esperado de frutas. Ela seleciona alimentos mais calóricos, como refrigerantes. A POF mostrou que o consumo de alimentos ultraprocessados, de consumo rápido, aumentou, como alimentos feitos no micro-ondas, por exemplo”, diz André.

Outro problema é o aumento do sobrepeso infantil nos últimos anos, especialmente na faixa de 5 a 10 anos de idade. De acordo com André, há o risco de essas crianças se tornarem obesas na fase adulta. Porém, o déficit de altura nas crianças de 0 a 2 anos diminuiu, o que demonstra uma melhora na qualidade da alimentação nessa faixa etária. “Quando esse nível é alto, mostra que a criança teve problemas de saúde no começo da vida, como ausência de amamento materno ou consumo de alimentos que dão condição de desenvolvimento adequado para a idade”, esclarece o gerente da POF.

Assim como André, Arbex reconhece o novo desafio: “houve uma inversão. Estávamos com problemas de desnutrição na infância, mas mal superamos a fome e estamos enfrentando a obesidade e o sobrepeso nos grupos mais pobres. Conseguimos melhorar o acesso na quantidade com aumento da renda, expansão de políticas de transferência como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria rural do INSS. Ampliamos a assistência e a previdência, aumentamos a capacidade aquisitiva, mas sem que isso tenha se traduzido numa melhoria na qualidade da alimentação”.

Os dados da POF comprovam a prioridade das famílias com menores rendimentos em gastos com alimentação. Em 2008, entre as famílias que recebiam até dois salários mínimos, as despesas com alimentos eram 27,8% do total, proporção que caía para 8,5% entre aquelas que recebiam mais de 25 salários.

#praCegoVer Infográfico com as despesas familiares brasileiras, com destaque para a alimentação

Praticidade estimula consumo de alimentos industrializados

Apesar de nutricionalmente deixarem a desejar, os alimentos processados conquistam os brasileiros por terem preparo mais simples que a comida caseira, além de serem mais baratos que as refeições em bares ou restaurantes. É o caso de Cristina Ruade, 58 anos, trabalhadora autônoma no Rio de Janeiro (RJ).

“Eu [prefiro] porque é muito mais prático. Hoje em dia não podemos perder muito tempo. Muitas vezes só é preciso esquentar ou vem pré-cozido. Então é rapidinho: chega, bota no micro-ondas e está pronto para comer”, explica a carioca.

Assim como os especialistas no tema, Cristina também se preocupa com a qualidade da dieta, mas se vê sem muita opção: “claro que incomoda, mas infelizmente não tem jeito. Então a gente come e depois faz dieta, exercício, tenta equilibrar como pode.

Casos como o de Cristina serão melhor conhecidos com a nova POF, que teve sua coleta encerrada neste ano e tem divulgação de seus primeiros resultados prevista para 2019. “Nela, poderemos ver se melhorou a ingestão de frutas e a dieta do brasileiro em geral”, conclui André Martins.