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Constituição Cidadã: 30 anos depois

Números caem, porém trabalho infantil ainda é realidade no país

Editoria: Séries Especiais | Rodrigo Paradella | Arte: Helga Szpiz, Marcelo Barroso, Helena Pontes

26/11/2018 11h00 | Atualizado em 07/06/2019 16h20

De acordo com a PNAD Contínua, o trabalho auxiliar familiar predomina entre as crianças de 5 a 13 anos - Foto: Pixabay

Um dos direitos sociais garantidos na Constituição Federal, a proteção à infância chega aos 30 anos da Carta Magna com avanços importantes, principalmente no combate ao trabalho infantil. A exploração de mão de obra de crianças foi fortemente reduzida, enquanto o trabalho ilegal de adolescentes também virou alvo de ações governamentais.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Atualmente, o trabalho é permitido por lei a partir dos 16 anos (antes de 1998, a idade mínima era de 14), desde que não seja em situação insalubre, perigosa ou no horário noturno, condições em que só é autorizada a contratação a partir dos 18 anos. Aos 14, entretanto, os interessados já podem ingressar no mercado de trabalho como aprendizes.

Legislação amplia proteção social

Embora hoje seja habitual considerar que crianças e adolescentes têm direitos a serem protegidos, a realidade nem sempre foi essa. A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 foram fundamentais para mudar esse paradigma e fundar o que seria a base para o combate ao trabalho infantil nas décadas seguintes.

Na questão da infância, a Constituição brasileira antecedeu a Convenção dos Direitos das Crianças da ONU, que é de 1989, ao trazer o direito à proteção integral desse grupo. “Antes disso, não se pensava a criança como titular de direitos. [A Constituição] abriu uma porta para diversas políticas de proteção. Depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente detalhou o que é essa doutrina”, explica a diretora-adjunta de estudos e políticas sociais do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Enid Rocha.

A pesquisadora lembra que o combate ao trabalho infantil se apoiou na Constituição, mas ganhou força principalmente após reportagens revelarem carvoarias da região de Três Lagoas (MS), que exploravam a mão de obra de crianças na metade dos anos 1990. “Isso virou manchete mundial. Já tínhamos várias pessoas e movimentos militando contra o trabalho infantil, mas não era objeto de uma política pública do governo federal até ali”, lembra Enid.

A partir disso, foi criado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que fazia transferência de renda para as famílias da região dessas carvoarias, com a obrigatoriedade de as crianças frequentarem a escola. “Esse programa foi um sucesso, foi ampliado e depois se juntou ao Bolsa Família. Foi ficando cada vez maior. As famílias que estão nessa condição recebem uma atenção maior dentro do Bolsa Família”, completa.

País registra queda acentuada do trabalho infantil

O impacto dessas políticas pode ser comprovado na evolução dos números desde a década de 90. Na faixa etária mais sensível, de 5 a 13 anos, o trabalho infantil teve quedas bruscas nos últimos 20 anos. Em 2016, nesse grupo, apenas 0,7%, ou 190 mil pessoas, estavam ocupados em atividades econômicas, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua).

“Formalmente, não podemos comparar com a PNAD anual, mas esse indicador já vinha apresentando uma tendência de queda causada por políticas públicas de geração de renda. O trabalho infantil é muito relacionado à pobreza. Quando se combate a pobreza, ele diminui”, complementa a economista da coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE, Flávia Vinhaes.

Entre as crianças de 5 a 13 anos, predomina o trabalho como auxiliar familiar, ou seja, quando as crianças ajudam outro morador de seu domicílio em alguma atividade econômica sem serem remuneradas por isso. “A mãe que é doméstica e a filha ajuda, por exemplo. Ela não recebe, mas auxilia alguém que recebe”, explica Flávia. As crianças nessa condição são 73% das que estão ocupadas em atividades econômicas dentro desse grupo etário. Essa situação puxa o rendimento médio das crianças ocupadas nessa idade (com ou sem remuneração) para R$ 132.

“Dessas crianças ocupadas em atividades econômicas, 98,4% estavam na escola. É uma taxa bem elevada. Das que não trabalham, ela é de 98,6%, por exemplo. Só percebemos essa diferença na frequência nas crianças mais velhas, que abandonam o estudo para trabalhar”, aponta a economista.

Também na faixa de 5 a 13 anos, existem 292 mil crianças que trabalhavam na produção para consumo da família, como aquelas ocupadas na agricultura de subsistência.

Trabalho precoce prejudica formação de crianças e adolescentes

Mariza Veiga, de 60 anos, conta que começou a trabalhar aos 12, no Rio de Janeiro, como explicadora de outras crianças e ajudante de lavadeiras, recolhendo roupas das clientes para o serviço. Ela conta que a pequena renda extra funcionava como forma de garantir o lazer com os amigos, já que o orçamento familiar era apertado na época. “Minha mãe ficou viúva quando eu era criança e não podia me dar dinheiro com facilidade. Para comprar uma roupa, ir ao cinema, lanchar na rua, precisava ganhar meu dinheiro”.

Ela complementa ainda que o trabalho não a atrapalhou na escola: “dava as aulas uma hora por dia e só à noite ajudava as lavadeiras, e também não eram todos os dias, eram duas ou três vezes. Durante a semana eu tinha que estudar e, nos fins de semana, podia sair com as colegas da minha idade. Era tudo bem definido: a hora de estudar, a de trabalhar e, nos fins de semana, de me divertir”.

A realidade encarada por Mariza, entretanto, é bem diferente das crianças que precisam ajudar no orçamento familiar ou dos adolescentes que abandonam o colégio para trabalhar por falta de perspectiva. Para Flávia Vinhaes, é importante questionar esse tipo de cultura.

“O trabalho infantil é permeado por um monte de senso comum, como ‘é melhor trabalhar que roubar’. É importante questionarmos essa cultura de trabalho da criança, porque pode gerar danos físicos, emocionais e afasta a criança da escola. Isso prejudica o desempenho ou até mesmo gera a evasão escolar, quando a criança deixa a escola para trabalhar”, destaca Flávia.

Para Enid, o combate não pode ser deixado de lado, mas é inegável o avanço conquistado nas últimas duas décadas. “O Brasil é considerado um case de sucesso nisso. Em 1995, tínhamos meio milhão (522 mil) de crianças de 5 a 9 anos trabalhando, hoje são 30 mil crianças. Ultimamente, tem ocorrido um aumento do trabalho no grupo entre 14 e 15 anos, o trabalho do adolescente, que é uma questão mais difícil para a política pública porque não é tanto para ajudar a família, mas para ter acesso a bens de consumo, como tênis, roupas”, avalia a pesquisadora do Ipea.