Constituição Cidadã: 30 anos depois
Saúde avança, mas segue longe do idealizado em 1988
29/05/2018 11h00 | Atualizado em 26/11/2018 14h17
Além do 82º ano de existência do IBGE, 2018 marca outro importante aniversário para a sociedade brasileira: há 30 anos, era aprovada a Constituição Federal de 1988, considerada um marco em relação aos direitos sociais no país. Por isso, a Agência IBGE Notícias começa nesta terça-feira uma série de reportagens sobre as conquistas trazidas pela Constituição Cidadã, a começar pela garantia da saúde como direito básico.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Ao reconhecer a saúde como direito, a Constituição de 1988 foi responsável por uma ampliação considerável no acesso aos serviços médicos públicos, principalmente pelas camadas mais pobres da população. Embora ainda imperfeito, o Sistema Único de Saúde (SUS) conseguiu reduzir deficiências anteriormente existentes no setor.
“Ampliamos muito o acesso, principalmente para os mais pobres e a população fora dos grandes centros urbanos. Aumentamos a oferta de serviços básicos, e com isso baixamos a mortalidade infantil, melhoramos a vacinação, além de haver uma diminuição significativa de algumas patologias”, explicou o médico e pesquisador do IBGE Marco Antônio Andreazzi.
“O SUS tem nichos de excelência, locais que conseguem fazer transplante de rim, córnea e mesmo de fígado, que é um dos mais complexos, além do controle da AIDS”, lembrou a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Isabela Santos. “Temos mudanças importantes nesses 30 anos, mas o SUS real não é igual ao SUS ideal. Você ainda tem muitos problemas”, completou.
Isabela lembrou ainda que, mesmo com os direitos conquistados na Constituição, a saúde pública ainda tem muito a caminhar. “Desde a ditadura militar, vem aumentando a participação do setor privado na saúde. O SUS cresceu, mas sempre em concorrência com o setor privado”, ressaltou. “Além disso, o SUS não foi financiado adequadamente por nenhum dos governos pós-88. Ainda não temos um sistema como queríamos”, disse a pesquisadora.
“Há uma desigualdade no acesso. Na teoria é igual para todos, mas, na prática, quem tem dinheiro tem plano de saúde e quem não tem usa o SUS”, pontua a pesquisadora da Fiocruz. “Essa diferença no acesso é uma discrepância que não foi criada pelo SUS, mas é algo que ele não conseguiu impedir”, complementou Andreazzi.
Curiosamente, os avanços na saúde básica também trouxeram novos desafios. A redução na mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida causaram um aumento na demanda por serviços complexos relacionados ao envelhecimento da população.
“Doenças crônicas e degenerativas aumentaram e exigem serviços de maior complexidade, o que tem sido um gargalo do nosso sistema. E que tende a se agravar”, explicou Andreazzi, que lembra que a pesquisa do IBGE Assistência Médica e Sanitária (AMS) de 2009 já mostrava uma redução do número absoluto de leitos desde 1988. No ano da Constituição, eram mais de 527 mil unidades, que caíram para pouco menos de 432 mil em 2009, 81% do número inicial.
Número de leitos para internação em estabelecimentos de saúde | |||
Brasil | |||
Ano | Esfera administrativa | ||
Total | Público | Privado | |
1988 | 527196 | 120776 | 406420 |
1999 | 484945 | 143074 | 341871 |
2009 | 431996 | 152892 | 279104 |
Fonte: IBGE - Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária |
Garantia incerta
Embora tenha representado um avanço no combate às questões primárias da saúde nacional, a Constituição de 1988 não resolveu a falta de acesso aos serviços mais complexos. Mesmo com o direito legal, muitas famílias ainda não conseguem atendimento adequado na rede pública, como é o caso de Oliveiro Brizio Filho, de 60 anos, irmão de Regina e Sandra, ambas moradoras do Engenho Novo, no Rio de Janeiro.
Com insuficiência renal e pneumonia, o aposentado e profissional de uma empresa de elevadores teve que ficar internado de forma improvisada em uma unidade básica de saúde durante oito dias até conseguir uma vaga na Unidade de Tratamento Intensiva de um hospital.
“A médica disse que ele não podia ficar lá, pois estava precisando de hemodiálise”, explicou Regina, que é advogada. “Ela disse que precisávamos de uma liminar para conseguir uma vaga em um hospital público. Fomos no plantão judiciário e ganhamos da Defensoria Pública um documento dizendo que o oficial de justiça notificaria a secretaria de saúde do estado e do município para encontrar uma vaga em até 27 horas. O que aconteceu depois? Nada”, contou uma das seis irmãs de Oliveiro, que ainda tem três irmãos e duas filhas. “São liminares praticamente para nada, porque não tem vaga”, acrescentou Sandra.
Após passar mais sete horas no fórum, Regina ainda conseguiu uma segunda liminar com indicação de três hospitais privados para internação, mas novamente não obteve resultado. “Ele ficou oito dias na UPA (Unidade de Pronto Atendimento), saiu de lá praticamente morto. Mas não posso reclamar dos médicos e dos funcionários. Fizeram o possível, mas não havia equipamento. Foi um milagre, os médicos de lá realmente são médicos”, contou a advogada, que só conseguiu uma vaga para o irmão em um hospital público com a ajuda de um amigo.
“Eu fui a cinco ou seis hospitais. Pedi a Deus e o mundo. Só faltou andar de joelhos. Nunca fiquei tão feliz de arrumar uma vaga em um hospital”, contou Regina. “Agora ele está fazendo hemodiálise todos os dias. Não pode deixar de fazer porque os rins estão parados. Quando chegamos, me perguntaram como ele estava vivo. Ele está escapando de tudo, está vivendo”, completou.
Diagnóstico necessário
Para mapear onde estão as dificuldades do sistema que levam a situações como as de Oliveiro, são essenciais a construção de indicadores na área da saúde. É o caso de pesquisas como a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), que teve sua última edição em 2008 e volta a campo no segundo semestre desse ano. Além dela, a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) e a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) terão novas edições em breve.
“Teremos a possibilidade de avaliar bem o setor. Todas elas refletem as condições da saúde da população”, explicou Andreazzi, que ressaltou o papel do IBGE como coordenador dos indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. “É uma contribuição que estamos dando. As pesquisas domiciliares permitem monitorar as políticas públicas na área”, complementou.
A pesquisadora da Fiocruz Isabela Santos também destacou a importância dos indicadores. “É mais que fundamental, é vital para o país ter essas pesquisas de forma contínua. E o papel do IBGE e seu know-how é fundamental nisso. Isso é importante para qualquer governo, independente da ideologia. Fazer pesquisa na saúde é investir na população, é poder planejar as políticas públicas”. Ela reiterou que “as pesquisas sobre acesso e uso de saúde e as condições gerais da população são fundamentais para o governo identificar o que está acontecendo e reformular as políticas”.
Por enquanto, porém, muito ainda precisa ser feito para que o direito à saúde sonhado em 1988 efetivamente seja posto em prática para todos. “A Constituição garante como nosso direito, mas a realidade é ainda outra”, encerrou Regina.