Constituição Cidadã: 30 anos depois
Insegurança aumenta, restringe direitos e ameaça liberdade no país
29/06/2018 16h50 | Atualizado em 26/11/2018 14h18
Um dos direitos garantidos na Constituição Federal de 1988, a segurança é uma necessidade fundamental da vida em sociedade e a sensação da ausência dela é capaz de afetar decisivamente a vida de todos, dos planos de longo prazo à programação para a diversão no final de semana. Quando o direito à vida é ameaçado, o lazer – também protegido pela Constituição Cidadã – vira uma manifestação de resistência em meio ao medo.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]
Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
De uma forma geral, de acordo com o sociólogo Ignácio Cano, a segurança pública regrediu em relação ao que era há 30 anos, no momento em que foi aprovada a Constituição Federal. Além do crescimento na criminalidade, houve um aumento no número de locais em que o Estado não é mais soberano, como áreas dominadas por milícias ou pelo tráfico de drogas.
“De lá para cá, houve uma deterioração. As taxas de homicídio continuaram crescendo e seguem assim no momento. Houve um deslocamento da violência letal como um problema do Sudeste para o Nordeste, assim como um aumento da sensação de insegurança. Somos campeões de homicídios no mundo, o que aumenta essa percepção de crise permanente na segurança pública”, explicou o coordenador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
“Naquela época, pensava-se que a redemocratização por si só diminuiria a criminalidade. Uma parte da esquerda acreditava que a inclusão social - reduzir a desigualdade somente - resolveria a criminalidade, o que não aconteceu. Estudos mostram que essa relação entre pobreza, desigualdade e violência é uma relação de longo prazo, ou seja, os efeitos dessa redução da desigualdade recente ainda não afetam a situação atual”, complementou Cano.
O Rio de Janeiro é hoje o foco das atenções nacionais quando o assunto é segurança pública. Sob intervenção federal desde fevereiro deste ano, o estado vive uma crise na área que se agravou nos últimos anos.
Embora a sensação de insegurança seja comum aos cidadãos fluminenses, aqueles que vivem em regiões dominadas por criminosos são afetados diariamente pelo medo. Um dos exemplos é o Complexo da Maré, na capital, onde viviam 129,7 mil pessoas em 2010, segundo o Censo daquele ano.
“A Maré é dividida por barreiras invisíveis, entre áreas dominadas por facções diferentes. Mas nos últimos anos o direito de ir e vir caiu por causa do Estado, as incursões não têm hora para acontecer. Vi o crescimento da opressão do Estado dentro da minha favela”, comentou Flávia Cândido, 36 anos, moradora da Maré, estudante de Português e Italiano na UERJ.
“Só em 2018, foram 43 incursões policiais, 43 dias sem aula, sem poder ir à faculdade. Só esse ano tivemos três grandes operações. No último dia 20 de junho, tivemos a novidade do helicóptero, tendo como resultado a morte do Marcos Vinícius (estudante de 14 anos) e mais seis execuções de pessoas que não sabemos nem o nome”, lembra Flávia, que é mãe de duas crianças e um adolescente.
Da vida ao lazer: direitos ameaçados
A sensação permanente de medo afeta toda a vida de quem se sente inseguro, inclusive o lazer. “Fica difícil falar de lazer com tudo que o que vivemos. Mas tentamos sobreviver fazendo do luto a luta”, pontuou Flávia. “O lazer nosso é poder curtir um futebol, ver o filho jogar, a cerveja, o funk. Não temos acesso a mais cultura que isso, porque não existe mobilidade urbana para nós que não seja voltada para o trabalho”, completou.
Além da insegurança e da falta de mobilidade, comunidades como a de Flávia também sofrem com a limitação causada pelo baixo rendimento médio de seus moradores. Com o orçamento mais apertado, a prioridade fica com despesas básicas como alimentação e moradia. Segundo os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-09, os gastos com cultura aumentavam gradualmente conforme a faixa de rendimento do domicílio subia.
Mas a falta de acesso ao lazer e à cultura em geral é apenas uma parte da restrição ao qual essas populações são submetidas. “[Afeta os direitos à] Integridade, saúde, educação. As pessoas não podem ir à escola, às vezes não podem ter acesso direito à saúde. O direito ao lazer... E há um impacto forte sobre a atividade econômica”, ressaltou Cano.
“É algo que tem impacto sistêmico sobre todos os direitos. A violência doméstica tem impacto na igualdade de gênero, por exemplo. É difícil achar uma área em que isso não afeta”, completou.
Uma das políticas públicas apontadas como saída para o problema da violência, a educação é ameaçada diretamente pela insegurança. “Não existe um horário tranquilo para se estudar, já começa com o horário menor nas escolas. Temos apenas um colégio de ensino médio funcionando o dia inteiro e um colégio noturno, para atender a 140 mil pessoas. Você já não dá o direito à educação. Acabamos tendo que mandar nossos filhos para outros bairros. Temos mães com filhos em escolas de outras comunidades, tendo que passar por essas barreiras invisíveis diariamente”, destacou Flávia, mãe de um adolescente de 17 anos que acorda às 5 horas para estudar em Copacabana e fugir da precariedade causada pela violência.
Sensação de insegurança maior entre população urbana
Em 2009, o IBGE divulgou o suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios sobre vitimização e acesso à Justiça no Brasil com dados relativos àquele ano. Além de informações sobre a existência de dispositivos de segurança nos domicílios, a publicação mostrou que 47,2% da população com 10 anos ou mais se sentia insegura na própria cidade, número que subia para 50,3% nas áreas urbanas.
“Mais da metade da população urbana se declarou insegura, enquanto esse número foi de 30,7% nas áreas rurais. Também havia uma diferença na sensação de segurança entre as regiões do Brasil, com o Norte tendo a maior sensação de insegurança (51,8%). Há também essa redução conforme a pessoa se afasta do próprio domicílio, com a pessoa se sentindo mais segura na residência (78,6%), depois no bairro (67,1%) e, por último, na cidade onde mora (52,8%)”, explicou o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo.
“Além disso, quanto maior o estrato de renda, maior a segurança no domicílio, mas menor no bairro e na cidade onde mora. Essa diferença na percepção de segurança desses três locais mostrou-se fundamental nesse caso. A pesquisa mostra também que as mulheres se sentem menos seguras no geral na comparação com os homens”, complementou Cimar.
Com o aumento na criminalidade e 59.103 homicídios dolosos em 2017, de acordo com levantamento do Monitor da Violência, existe uma tendência ao aumento na sensação de insegurança, que cada vez mais se mostra difundida em grandes cidades como o Rio de Janeiro.
“O que fica claro é: se alguém achava que se podia proteger alguns e deixar outros grupos na insegurança, a história mostra que não há um caminho para um grupo ou outro, muito embora essa violência afete mais alguns. Há que se encontrar uma saída para todos”, encerrou Cano.