Expedição Jalapão
Das primeiras expedições à captura das coordenadas, 90 anos de pesquisa e trabalho de campo para retratar o território brasileiro
30/01/2024 18h00 | Atualizado em 08/02/2024 08h52
O IBGE quer resgatar o cenário de suas grandes expedições na divulgação do Censo Coordenadas Geográficas dos Endereços, que ocorrerá no dia 2 de fevereiro, às 10 horas, na cidade de Ponte Alta do Tocantins, portal de entrada do Parque do Jalapão. O objetivo é reviver as expedições históricas do IBGE que ocorreram entre as décadas de 1940 e 1960 e que criaram as bases do mapeamento territorial brasileiro pelo Instituto.
A Expedição IBGE Jalapão Tocantins partirá no dia 1º, da Praça dos Girassóis, na cidade de Palmas, às 14hs, rumo ao município de Ponte Alta do Tocantins. Participam o presidente do IBGE, Marcio Pochmann, diretores, gerentes e técnicos do IBGE, representantes de órgãos públicos dos governos municipal, estadual e federal, e diversos outros parceiros e instituições.
A chegada a Ponte Alta está prevista para o dia 2, quando serão divulgadas as coordenadas geográficas dos endereços de todos os domicílios e estabelecimentos visitados durante a operação de coleta do Censo 2022. A captação dessas coordenadas para todos os endereços do país, incluindo as áreas urbanas, foi uma das inovações do Censo Demográfico 2022, resultando em um cadastro de endereços 100% georreferenciado pela primeira vez.
Essa inovação, além de fornecer um panorama completo da cobertura territorial da coleta realizada pelo IBGE, permite espacializar, de forma mais precisa sobre o território os dados estatísticos, agregando-os nos mais diversos recortes geográficos. É também o ponto alto da atividade de mapeamento de território, que só foi possível pelo pioneiro trabalho de expedições realizadas pelos técnicos do IBGE a partir dos anos 1940.
“As expedições duraram três décadas e foram as primeiras iniciativas do Conselho Nacional de Geografia, que antecedeu o IBGE, para reconhecimento do território nacional. Antes haviam sido realizados outros tipos de expedições exploratórias, como as naturalistas e de botânica no século XIX. Mas as expedições geográficas foram as primeiras de mapeamento do território nacional com objetivo de integrá-lo e serviram de treinamento das primeiras gerações de geógrafos ibgeanos”, diz Cayo de Oliveira Franco, coordenador de Geografia da Diretoria de Geociências do IBGE.
Adma Hamam de Figueiredo, gerente de Atlas e Representação do Território do IBGE, diz que havia no país consultores estrangeiros importantes, como o alemão Leo Waibel e o francês Francis Ruellan, que foi mestre e trouxe Pedro Geiger -, grande geógrafo do IBGE, para trabalhar na Instituição. Adma explica que as expedições denominavam naquela época o trabalho de campo que representa o coração instrumental da ciência geográfica.
“As expedições foram fundamentais na grande contribuição da Geografia para o conhecimento da realidade territorial do país. Era o final dos anos 1930 e início dos 1940, quando a geografia se institucionalizou como ciência nas universidades e no IBGE, com enorme contribuição de Pedro Geiger, Jorge Zarur, Orlando Valverde, Nilo Bernardes, entre outros. No final dos anos 1970 – quando já não eram mais chamadas de expedições, mas trabalhos de campo que duravam cerca de um mês -, o Departamento de Geografia, entre outros projetos, foi estudar o início do trabalho de mecanização da agricultura no oeste do Paraná”, diz Adma Figueiredo.
A Geografia iniciou suas expedições nos primeiros anos da década de 1940, em função da demanda governamental para o estudo dos processos de ocupação do território, via mecanismos de colonização e da macrorregionalização (divisão do Brasil em grandes regiões). Entre 1941 e 1968, período coberto pelos dados do acervo fotográfico dos trabalhos de campo do IBGE, foram realizadas 101 expedições na área da Geografia, sendo 38 nos anos 1940, 24 entre 1950 e 1955 15 entre 1956 e 1959, e 24 entre 1960 e 1968.
O livro “As Expedições Geográficas do IBGE: Um Retrato do Brasil (1941-1968)” traz uma seleção de fotos dos trabalhos geográficos de campo realizados pelo IBGE entre as décadas de 1940 e 1960, material que integra o acervo iconográfico da Biblioteca Isaac Kerstenetzky. Além de textos temáticos, apresenta também um mapeamento dos registros existentes sobre essas expedições na Revista Brasileira de Geografia e no Boletim Geográfico, ambos publicados pelo IBGE.
Em 1941, uma das primeiras expedições mapeou a Baia da Guanabara e regiões vizinhas. Em 1943, a regão do Jalapão recebeu a expedição, da qual participou o geógrafo Pedro Pinchas Geiger, ícone da geografia brasileira, que completou 100 anos em 2023. O geógrafo começou a trabalhar no órgão em 1942, seis anos após a fundação do IBGE, a convite do professor e geomorfólogo francês Francis Ruellan, consultor do instituto na época.
Em sua primeira expedição, Geiger propôs uma classificação hierarquizada das cidades da região. Esse trabalho foi revisitado algumas vezes, a mais recente delas em 2019, no livro “Jalapão ontem e hoje”. A viagem ao Jalapão tinha como objetivo a conclusão de um mapa mais preciso do Brasil, na escala 1:1.000.000. Ele era o único geógrafo do grupo, formado em sua maioria por topógrafos.
“O Ruellan pediu que eu fizesse um levantamento sobre a região. Levei uma bússola, um barômetro e um hodômetro (instrumento para medir distâncias percorridas), para fazer as anotações e traçar esse perfil. Ele nos orientou a só fazer as medições quando estivéssemos parados, a fim de evitar imprecisões com os instrumentos. Segui o conselho à risca, mas os outros não. Aos poucos, por não pararem tanto, eles foram se distanciando. Fiquei com muito medo, me vi sozinho no meio do Jalapão. Então percebi que o burro que me acompanhava conhecia o caminho. Confiei nele, e deu tudo certo”, disse Geiger em depoimento ao IBGE no ano passado.
Cayo Franco diz que esses equipamentos podem parecer limitados, nos dias atuais, mas era o que existia de mais avançado na época. Hoje a Geografia dispõe de muito mais tecnologia, como imagens de satélite e o georreferenciamento. “Eram grandes trabalhos de campo com o objetivo de percorrer o território com técnica geográfica e precisão cartográfica. Tudo isso com as limitações da época, sem GPS, sem coordenadas cartográficas. Era uma época em que se utilizavam conhecimentos científicos muito distantes da tecnologia atual, mas com o objetivo de mapear o território e estabelecer os limites. O primeiro Atlas Nacional estabeleceu os limites internos e de fronteira do país, a pedido do presidente Getúlio Vargas”, diz Franco.
À medida em que se mapeavam os territórios, as expedições foram diminuindo, já que não havia mais a necessidade de uma investigação tão intensiva e longa do território nacional. A prática dos trabalhos de campo permanece até hoje pelas áreas de geociências e de geografia.
No romance “O Tronco”, de 1956, Bernardo Elis, possivelmente maior escritor goiano do século XX, apresenta uma versão fictícia de fatos históricos ocorridos no início do século XX na região do Jalapão, norte de Goiás (atual estado do Tocantins), que promoveram uma intensa disputa familiar por disputa de terra que envolveu jagunços e soldados do exército brasileiro, respectivamente representantes do coronelismo e do poder público. O território desse romance foi revisitado no trabalho de campo realizado pelo IBGE, em 2016, e resultou em um dos capítulos da terceira edição do Atlas das Representações Literárias – Sertões Brasileiros II. A série visa a representar – por meio de mapas em diferentes escalas, fotos e imagens de satélite – regiões brasileiras que constituíram elementos marcantes da trama de algumas das grandes obras da literatura nacional.
“As edições do Atlas das Representações Literárias já mapearam o Brasil Meridional, os dois volumes dos Sertões, a Costa brasileira e que agora está iniciando a edição da Amazônia. De certa forma, esses trabalhos remontam às grandes expedições, identificando regiões que foram retratadas na literatura. Em 2016, eu participei do trabalho de campo na região do Jalapão para entender melhor o contexto retratado nos romances. Em 2014, o próprio Geiger publicou um artigo inédito com relatos da expedição de 1943, que, na época, não foram publicados devido a divergências dele com o engenheiro Gilvandro Simas Pereira, chefe da expedição”, conta o coordenador de Geografia.
Para ele, as expedições são uma grande abertura de conhecimento do território nacional, da população que o ocupa e das dinâmicas internas do território. As expedições permitiram os primeiros registros geográficos de algumas regiões e de feições do relevo nacional. Além das expedições da Baia da Guanabara em 1941 e a do Jalapão por Pedro Geiger entre abril e outubro de 1943, outras expedições marcantes foram as de Vale do Rio de São Francisco, realizada por Orlando Valverde e Jorge Zarur entre julho e setembro desse mesmo ano (1943), e da Ilha de Marajó em 1953. Uma das últimas relatadas, de 1968, abrangeu, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Goiás.
Franco ressalta que, além de mapear territórios, as expedições representam um momento profícuo para a geografia fazer distinções culturais, econômicas e sociais que acabaram sendo reverberados em artigos e relatos de campo na Revista Brasileira de Geografia e no Boletim Geográfico. Hoje há menos necessidade de conhecer os limites do país, mas há outras dimensões a serem investigadas, como a biodiversidade.
“A própria pesquisa do entorno é um trabalho de campo. Hoje o IBGE é muito avançado na tecnologia e está iniciando os trabalhos com big data, mas tudo isso não vai diminuir a importância do trabalho de campo. Além de ser um método científico consolidado e essencial, é uma forma importante de o pesquisador conhecer o território e a população que está investigando. Todo o trabalho de campo e mapeamento das comunidades e povos tradicionais, não deixa de ser inspirado nos métodos das grandes expedições. E, quase 90 anos depois, o IBGE conseguir coletar as coordenadas geográficas com tal nível de precisão e com imagens de satélite de alta resolução é algo fantástico, que remonta a toda possibilidade de estudo geográfico construído lá atrás”, destaca Franco.
As expedições também foram fundamentais para o desenvolvimento da geodésia brasileira, ciência que trabalha com formas, dimensões e campo de gravidade terrestres. Carlos Alberto Correa e Castro Junior, pesquisador que atua na área de geodésia da superintendência estadual de Goiás, destaca que a geodésia nasceu da necessidade que o país tinha de georreferenciar suas pesquisas. O IBGE é o gestor do sistema geodésico brasileiro, e, entre as atribuições da área, está a implantação dos marcos geodésicos – pontos materializados no terreno que têm coordenadas geográficas conhecidas precisamente.
“As equipes de geodésia também foram, e ainda são, responsáveis por diversas expedições. Na década de 1930, precisávamos referenciar os eventos estatísticos. Não bastava dizer o que ocorria, era importante dizer também onde ocorria. E assim surgiu a geodésia como apoio à cartografia e às pesquisas estatísticas, com ênfase nos censos demográficos, nossa pesquisa mais complexa. Hoje temos o apoio de um Sistema Global de Navegação por Satélite (GNSS), cuja constelação mais conhecida é o GPS. Antes, as equipes geodésicas eram compostas de mais de 30 técnicos. Hoje, com o GPS, bastam dois”, diz Castro Junior.
Entre os projetos que ele destaca, estão as expedições, em 2004 e 2005, voltadas às medições dos pontos culminantes do Brasil. Castro cita ainda a expedição ocorrida em 2006, que materializou o extremo norte brasileiro ratificando que o limite mais setentrional do Brasil não é no Oiapoque, e sim no Monte Caburaí, em Roraima. Outro marco foi a expedição que identificou as nascentes principais do Rio Amazonas, nos Andes peruanos, em 2007. O pesquisador estima que o IBGE tenha medido um pouco mais de 100 mil estações geodésicas, em inúmeras expedições, atendendo a diversos objetivos. Mas há outros projetos que demandam novas expedições. Um deles é o que tem por objetivo estabelecer a correlação entre as altitudes terrestres e os sistemas de altitudes oceânicos.
“Nesse contexto, um projeto-piloto vem sendo realizado em municípios costeiros do Rio de Janeiro. Não há clareza se a costa está afundando ou se o mar está subindo, por isso esse projeto-piloto foi concebido para possibilitar melhores avaliações. A tendência é de que outras regiões sejam contempladas com levantamentos similares. Participamos também de medições que vão integrar um sistema único global de altitudes. Para tanto, estamos atualmente realizando medições na Amazônia. Em resumo, uma grande quantidade de expedições geodésicas e cartográficas têm sido empreendidas ao longo de décadas, para que o IBGE disponibilize a melhor caracterização possível da realidade brasileira”, diz o pesquisador.