Memória
Ícone da Geografia brasileira, Pedro Geiger completa 100 anos e prepara novo livro
22/05/2023 10h00 | Atualizado em 29/05/2023 13h32
A Geografia é, por definição, a ciência responsável pelo estudo de aspectos físicos, biológicos e humanos, e suas relações com o planeta Terra. Há profissionais, no entanto, que transcendem qualquer leitura superficial que se faça, imprimindo um olhar único e deixando um legado transformador em suas áreas de atuação. É o caso do geógrafo Pedro Pinchas Geiger, que completou 100 anos de idade no último mês de março e segue em atividade. A Agência IBGE Notícias conta um pouco sobre a vida deste personagem que ajudou a construir a história do IBGE, que comemora 87 anos na próxima segunda-feira, 29 de maio.
Carioca, filho de imigrantes judeus e casado há 67 anos com a artista plástica Anna Bella Geiger, com quem tem quatro filhos, Geiger é uma referência na Geografia, com diversos trabalhos relevantes publicados em livros, revistas, atlas e periódicos desde o início da carreira, principalmente nos campos da Geografia Humana e Urbana. Sua trajetória profissional, aliás, está diretamente ligada à história do IBGE. O geógrafo começou a trabalhar no órgão em 1942, seis anos após a fundação do Instituto, a convite do professor e geomorfólogo francês Francis Ruellan, consultor do IBGE na época. Ficou no IBGE até 1984.
“O IBGE foi a minha escola, onde me desenvolvi como geógrafo e a principal escola de trabalho para me formar”, diz Geiger. Ele lembra que seus planos relacionados à vida profissional, inicialmente, eram outros: “Eu queria ser médico, mas fui fazer Geografia para pagar meus estudos.”
Logo em sua primeira expedição a serviço do IBGE, em 1943, ao Jalapão (então parte de Goiás, atualmente no estado do Tocantins), Geiger propôs uma classificação hierarquizada das cidades da região. Esse trabalho foi revisitado algumas vezes, a mais recente delas em 2019 no livro Jalapão Ontem e Hoje.
Geiger explica que a viagem ao Jalapão tinha como objetivo a conclusão de um mapa mais preciso do Brasil, na escala 1:1.000.000. Ele era o único geógrafo do grupo, formado em sua maioria por topógrafos. “O Ruellan pediu que eu fizesse um levantamento sobre a região. Levei uma bússola, um barômetro e um hodômetro para fazer as anotações e traçar esse perfil. Ele nos orientou a só fazer as medições quando estivéssemos parados, a fim de evitar imprecisões com os instrumentos. Segui o conselho à risca, mas os outros não. Aos poucos, por não pararem tanto, eles foram se distanciando. Fiquei com muito medo, me vi sozinho no meio do Jalapão. Então percebi que o burro que me acompanhava conhecia o caminho. Confiei nele e deu tudo certo”, diz, aos risos.
Pedro Geiger foi precursor da Geografia urbana e propôs a divisão do Brasil em 3 regiões: Amazônia, Nordeste e Centro-Sul
“O Geiger foi um intérprete do seu tempo, um precursor da Geografia urbana no IBGE. Desde o seu primeiro trabalho, sobre o Jalapão, sempre teve sua atenção voltada para os estudos urbanos. Ele soube interpretar um país que era eminentemente agrário na década de 40, e já industrializado nos anos 80. Geiger foi, seguramente, um dos pioneiros em realizar estudos sobre o processo de urbanização e industrialização no Brasil”, afirma Adma Figueiredo, gerente de Atlas e Representações do Território do IBGE, que trabalhou com o geógrafo.
O geógrafo participou da primeira divisão regional do Brasil, quando foi responsável por São Paulo. Ele abordou o estado, pela primeira vez, sob a perspectiva da região industrial. Em 1967 propôs uma nova divisão do país (até então, o Brasil era dividido em Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Leste e Sul), com três regiões: Amazônia, Nordeste e Centro-Sul. Sua ideia considerava não apenas os aspectos físicos, mas também humanos, históricos e econômicos. Essa forma de organização, em regiões geoeconômicas, facilitou a compreensão das relações sociais e políticas do Brasil. De acordo com Geiger, essa foi a sua maior contribuição para a Geografia.
“Outro ponto importante foi sua visão inovadora de deslocar definitivamente o estado de São Paulo da Região Sul, à qual se vinculava pelo pertencimento ao Planalto Meridional, e trazer tanto o estado como sua capital para formar uma grande região a partir da qual se passaria a entender a dinâmica regional do Brasil de forma articulada”, acrescenta Adma.
Em artigo com Fany Davidovich, alertou sobre a ocupação desordenada do solo no litoral norte de São Paulo
Um dos trabalhos de Geiger que exemplifica bem sua visão diferenciada sobre temas relativamente pouco debatidos é a publicação de um artigo para a Revista Brasileira de Geografia, em 1974, sobre litoralização e interiorização do Brasil. Escrito em parceria com a também centenária geógrafa do IBGE, Fany Davidovich, o texto intitulado Reflexões Sobre a Evolução da Estrutura Espacial do Brasil Sob o Efeito da Industrialização alertava sobre a ocupação desordenada do solo no litoral norte de São Paulo, como mostra o trecho a seguir: “Verifica-se, assim, que somente em nossos dias trechos do litoral vão ser submetidos a uma circulação terrestre mais intensa, o que deveria servir de oportunidade para um planejamento racional de ocupação do solo, prevendo a divisão de usos e a preservação ambiental." Em fevereiro de 2023, quase 50 anos depois da publicação do artigo, o assunto ganhou destaque após a região ser atingida por forte chuva que causou destruição e mortes.
Maria Monica O´Neill, gerente de Regionalização e Tipologias do Território do IBGE, teve Geiger como seu primeiro chefe no Instituto e trabalhou com ele durante cinco anos. Ela chama a atenção para o impacto do geógrafo em outras áreas: “Ele era ousado, investigativo, já estava com um olhar voltado para a Geografia quantitativa. Naquela época, no IBGE, embora possuíssem conhecimento de matemática, poucas pessoas tinham a prática disso na Geografia. Por acaso, eu e um colega que ingressou junto comigo tínhamos esse conhecimento. Mesmo sendo de certa forma iniciantes na Geografia, o Geiger se interessou pelo nosso currículo. Ele se interessava pelas coisas novas, sempre atento a alguma característica que alguém tivesse e pudesse melhorar o trabalho dele. Não há um foco apenas no aspecto urbano ou econômico, sua obra abrange vários campos da Geografia.”
O geógrafo também refletiu sobre as condições de vida da Baixada Fluminense. “Um trabalho que gosto muito foi quando argumentei que, diferentemente do que se dizia na época, a razão do processo de decadência da Baixada Fluminense não foi a abolição da escravatura. Na verdade, a exportação da produção brasileira continuou crescendo mesmo após o fim da escravidão. O que provocou o declínio da atividade econômica relacionada ao açúcar foi a passagem da produção dos engenhos para as usinas, e a consequente concentração delas no Nordeste, em São Paulo e no norte do Paraná”, destaca Geiger.
Primeiro bolsista brasileiro na França, atuou como professor visitante na Sorbonne
A relevância dos estudos de Geiger repercutiu internacionalmente. Em 1946, foi o primeiro bolsista brasileiro a estudar na França, onde atuou como professor visitante por três anos na Universidade Sorbonne. Além de pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), foi professor visitante ainda em universidades brasileiras e estrangeiras, como UFRJ, UERJ, USP, Universidade Columbia (EUA), Universidade do Texas (EUA) e Universidade de Toronto (CAN). Um dos artigos de sua autoria de que mais gosta foi publicado nos Estados Unidos, em 2018, no livro Catastrophe and Philosophy. “É um trabalho especial porque faz referência à filosofia. A ciência não pensa a ciência. Quem pensa a ciência é a filosofia”, analisa ele.
O Mundo e o Brasil na Atualidade, seu novo livro, tem previsão de lançamento para este ano
Com uma mente inquieta, que parece estar sempre à procura daquilo que ninguém consegue ver, Geiger segue produzindo e com planos para o futuro. Atualmente está escrevendo O Mundo e o Brasil na Atualidade, seu novo livro, com previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano. A rotina de trabalho, é claro, permite momentos de diversão, seja através de reuniões familiares, jogos de xadrez pelo computador com amigos e jogadores de outras partes do mundo, além de sua outra grande paixão: o cinema.
Anna Bella Geiger conta que o marido é um apreciador da sétima arte, inclusive com textos publicados sobre o assunto: “Ele gosta muito de cinema. Durante o período da nouvelle vague, fazia interessantes análises simbólicas, filosóficas dos filmes. Certa vez escreveu sobre o David Lynch (diretor americano de filmes como Veludo Azul, O Homem Elefante e Coração Selvagem) e chegamos a encontrá-lo aqui no Rio”.
Assim como a Geografia, a obra de Pedro Geiger se renova a cada artigo ou livro produzido, sempre atenta às transformações da sociedade. “A Geografia continua em andamento, coisas novas seguem acontecendo. O mundo vai se desenvolvendo e isso abre espaço para uma produção cada vez maior da área”, ele observa.
Mais informações sobre o geógrafo no site Memória IBGE