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Revista Retratos

Ecovilas sinalizam novas possibilidades de convivência

Editoria: Revista Retratos | Camille Perissé e Marília Loschi

29/01/2019 10h00 | Atualizado em 09/02/2021 09h36

Projetos de moradia coletiva, preocupação com o meio ambiente, produção de culturas orgânicas e construção civil com materiais alternativos. “Ecovila” é o nome que tem sido dado desde a década de 1990 a um estilo de vida e organização que pode abarcar todas essas tendências, ou algumas delas combinadas. No Brasil, há cada vez mais comunidades que se autodenominam desse modo, o que traz novos desafios ao IBGE para retratar o país nos censos agropecuário e demográfico.

Pesquisadores nacionais e internacionais classificam as ecovilas como um tipo de “comunidade intencional”. De acordo com Maria Accioly, doutora em Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as comunidades intencionais são grupos de pessoas que deliberadamente escolhem fazer um projeto juntos, procuram uma terra, se instalam e realizam esse projeto. “As ecovilas podem ser consideradas um tipo de comunidade intencional específico, que responde geralmente a questões de sustentabilidade ecológica, mas não apenas”, comenta a pesquisadora.

Gabriel Siqueira mora com esposa e filhos numa ecovila no litoral norte de Ilhéus, na Bahia, e faz de seu estilo de vida um objeto de estudo e de trabalho. Com mestrado em administração, é especialista em gestão de ecovilas e dá cursos e consultorias na área. Sua inquietação é responder à pergunta: afinal, por que tantas pessoas, geralmente de classe média ou alta, abrem mão de seu conforto, de seus privilégios, para ir buscar outra vida na zona rural?

“As motivações acho que são múltiplas”, pondera Gabriel. “Boa parte é uma insatisfação com a vida pessoal e também, em muitos casos, com o sistema, com a sociedade”. Entretanto, os “neorrurais” – é como ele chama as pessoas que têm deixado suas vidas na cidade para viver em ecovilas rurais – precisam estar cientes das dificuldades de percurso. Gabriel considera que a adaptação do meio urbano para o mundo rural nunca é fácil, seja por falta de familiaridade com a vida longe dos centros urbanos, seja pelos desafios de gerar renda no campo. 

A pesquisadora do IBGE Maria Monica O`Neill observa estar havendo maior deslocamento de pessoas urbanas para o campo pelos mais diversos motivos. “Não podemos falar de ‘êxodo urbano’, pois não há dados que mostrem isso. Mas já existe uma tendência mundial de opção por morar mais longe dos centros urbanos, com deslocamento de cerca de duas horas até o trabalho, por exemplo”.

Para Monica, esta análise precisa ser feita com cautela no Brasil. “Os dados de deslocamento e migração do Censo Demográfico de 2020 permitirão a análise desses temas”, observa. 

A bióloga Vraja Lila escolheu viver a filosofia Hare Krishna na ecovila Goura-Vrindávana, em Paraty (RJ) - Foto: Lícia Rubinstein/Agência IBGE Notícias
Em Goura-Vrindávana, cultivam-se hortaliças, plantas medicinais, frutas e legumes para consumo da comunidade - Foto: Lícia Rubinstein/ Agência IBGE Notícias
A plantação de bambus foi a primeira iniciativa da ecovila Goura-Vrindávana - Foto: Lícia Rubinstein/Agência IBGE Notícias
Além de construções na própria comunidade, os bambus são utilizados em oficinas e cursos oferecidos na ecovila - Foto: Lícia Rubinstein/Agência IBGE Notícias
As vacas são protegidas, criadas para produzir leite e seus derivados. Não existe abate em Goura-Vrindávana - Foto: Licia Rubinstein/Agência IBGE Notícias
Wilson Dias se apaixonou pelas ideias de permacultura e bioconstrução que norteiam o projeto da ecovila Muriquiassu, em Niterói (RJ) - Foto: Pedro Vidal/Agência IBGE Notícias
Em Muriquiassu, a plantação é diversificada e as galinhas são criadas segundo o modelo orgânico - Foto: Pedro Vidal/Agência IBGE Notícias

Goura-Vrindávana: sustentabilidade e espiritualidade

Vida simples e pensamento elevado: este é o lema que une os moradores e visitantes do Ashram & Ecovila Goura-Vrindávana, na cidade de Paraty, RJ, nos limites da Serra da Bocaina. Mais de dois terços de sua propriedade são cobertos por florestas. Entre as atividades desenvolvidas na ecovila estão a proteção de bovinos (animais criados para dar leite, não para corte), construções e cursos sobre o uso do bambu, agroecologia e geração de eletricidade. Lá vivem cerca de vinte pessoas, incluindo crianças, mas o número flutua de acordo com o movimento dos voluntários e hóspedes da pousada que ocupa o mesmo terreno e é administrada separadamente.

O diferencial de Goura está no próprio nome: além de ecovila, é um ashram, palavra derivada do sânscrito que denota refúgio espiritual. A comunidade tem como base a filosofia Hare Krishna, uma tradição religiosa que chegou ao Brasil através dos ensinamentos do guru indiano Srila Prabhupada nos anos 1970 e que pratica a devoção ao deus hindu Krishna. Os Hare Krishna seguem princípios como a dieta lactovegetariana e vedação de uso de qualquer tipo de droga, álcool ou cigarro.

Na ecovila, não é obrigatório ser um devoto, mas a observação desses princípios é imprescindível. Por isto, para fazer parte da comunidade é preciso passar por um período de experiência – o que é comum na maioria das comunidades intencionais. “Temos esquema de voluntariado para as pessoas ficarem alguns dias”, explica Vraja Lila, bióloga, moradora de Goura. Nessa modalidade, a pessoa colabora com uma diária que cubra os gastos básicos e se compromete com algumas horas de serviço por dia. “Pesquisamos esse modelo em diferentes ecovilas”, diz Vraja Lila.

O mentor espiritual da comunidade é também o morador mais antigo. Swami Purushatraya, como é conhecido, vive em Goura há mais de vinte anos, entremeados por constantes peregrinações à Índia em busca de conhecimento. Sua vivência mostra, na prática, o que os pesquisadores das ecovilas vêm apontando: além da questão da sustentabilidade, as ecovilas se preocupam com uma visão integrada que inclui questões sociais e princípios éticos.

“O termo que se usa nesse meio alternativo é que tem que ter uma cola”, explica Swami. “Então, nossa cola para juntar as pessoas é o interesse pela prática espiritual, chamada ‘bhakti yoga’. As pessoas falam de desenvolvimento sustentável em relação à natureza sem perceber que a vida das pessoas na maioria dos casos não é sustentável. Elas perderam a visão filosófica da vida. Aqui nós temos o ambiente mais adequado para essa prática espiritual: vida simples e pensamento elevado”.

Muriquiassu, uma ecovila em construção

No bairro de Muriqui, Niterói, RJ, a ecovila Muriquiassu é um projeto iniciado há quatro anos pelo casal Wilson Dias e Eloína Pimentel. No momento, estão construindo o que será a sede da ecovila e, para isto, alugaram uma casa ao lado do terreno e abriram vagas para voluntariado. De 2016 para cá, estimam já terem passado mais de cem voluntários pela casa.

O casal idealiza um projeto de bioconstrução no terreno de um hectare, sendo que metade disto pertence à Reserva Ecológica Darcy Ribeiro, também em Niterói. As casas estão sendo construídas com materiais em sua maior parte não-industrializados, como bloco de adobe, hiperadobe (terra ensacada), pau-a-pique, barro queimado, reboco fino, cordwood (lenha). Plantam bananeira, árvores frutíferas, feijão, gengibre, inhame, tomate, aipim, alface e planejam ter cisternas ecológicas, com captação de água da chuva. Além disso, têm uma criação orgânica de galinhas e produzem desinfetante natural e sabão.Hoje, o objetivo é construir oito casas e o pré-requisito para participar do grupo é que todos sigam um estatuto permacultural.

Wilson conta que Muriquiassu nasceu da intenção de fazer um condomínio ecológico voltado para o mercado. “Mas se você pesquisar o que tem de ecológico no mercado, é só uma ‘pincelada’”, analisa. Ao estudar sobre permacultura, ele abandonou a ideia inicial e quis construir coletivamente todas as casas com técnicas de bioconstrução. Empresário, perdeu os investidores e sócios no projeto, mas ganhou o voluntariado. A esposa Eloína reduziu as atividades como advogada para se dedicar a Muriquiassu. Ela diz que a permacultura já está no seu DNA: “Vem dos meus avós, meu pai, esse amor pela terra, pelas plantas. Isso encanta, dá muito mais sentido de viver do que advocacia, tribunal, corrupção”.

Mudanças no perfil na produção familiar

As memórias de Eloína remetem à infância, frequentando a casa dos avós, na fazenda. Lá se fabricavam farinha, açúcar mascavo, rapadura. Comia-se o que se plantava. Essa vida mudou aos dezoito anos, quando saiu para estudar. Vivendo na cidade, ela teve um sítio como refúgio e chegou a morar numa comunidade cristã por vinte anos. Entretanto, para terminar a educação dos filhos, teve de retornar à cidade.

O perfil das ecovilas é de pessoas jovens – casais grávidos ou com filhos, querendo criá-los de forma diferente. Entretanto, é justamente a população mais jovem que tem deixado os estabelecimentos agropecuários, geralmente em busca de melhores oportunidades de trabalho e de formação profissional.

Entre os produtores na agricultura familiar, a dificuldade de reter as novas gerações é objeto de preocupação. “Essa tendência já acontece há algum tempo”, analisa a pesquisadora Maria Monica O`Neill. “Se o produtor rural pode dar uma formação melhor para o filho, ele sai e nem sempre volta [a trabalhar na agricultura]”.

Nesse contexto, é necessário diferenciar os perfis de quem sobrevive há gerações na agricultura familiar e quem chega para viver nas ecovilas rurais. De acordo com Censo Agropecuário 2017 do IBGE, houve mais envelhecimento do que renovação na mão-de-obra na agropecuária em relação a 2006. Na agricultura de base familiar, quase metade dos trabalhadores tem de 45 a 64 anos e muitos estão em vias de se aposentar, ao passo que o número de trabalhadores com até 34 anos vem declinando.

“A quantidade média de pessoas por estabelecimento se reduziu, porque os filhos estão saindo e não está havendo reposição”, comenta Antônio Florido, coordenador do Censo Agropecuário do IBGE. “Se continuar essa redução, muitos desses produtores vão parar as atividades, porque não têm força de trabalho nem renda para contratar”.

Já as ecovilas acabam sendo um perfil bem diferente. A maioria delas não é baseada na agricultura como atividade econômica principal, como esclarece Maria Accioly. “São em geral famílias de classe média e classe média alta, com dinheiro para comprar uma terra e investir ou trabalham com outras coisas, até trabalho remoto. A agricultura no Brasil é extremamente desvalorizada para o pequeno produtor”.

Veja a matéria completa na Revista Retratos n 15.