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Revista Retratos

ODS 5: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas

Editoria: Revista Retratos | Marília Loschi | Arte: Licia Rubinstein

16/10/2017 09h00 | Atualizado em 26/07/2019 18h06

Na edição número 4 da revista Retratos, o IBGE dá início a uma série de entrevistas com os técnicos da instituição responsáveis por coordenar cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Confira, agora na íntegra, a entrevista com Bárbara Cobo Soares, doutora em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora do ODS 5 no Instituto. Ela comenta a participação do IBGE nesse cenário e destaca os aspectos da nossa cultura que ainda colaboram para as desigualdades sociais entre homens e mulheres.  

Revista Retratos - Como o IBGE vem tratando a questão de gênero no Brasil?

Bárbara Cobo Soares - O IBGE já tem um histórico na exploração do tema. Toda pesquisa domiciliar que a gente desagrega por sexo, homem/mulher, já é o primeiro passo para você fazer uma análise de gênero, porque gênero é mais do que a questão biológica. São os papéis esperados de cada sexo numa sociedade: o que fazer, o que cursar, comportamentos, uma série de coisas. Na Síntese de Indicadores Sociais nós exploramos o tema principalmente no mercado de trabalho, que é o maior foco de desigualdade de gênero no país. O Brasil já superou o gargalo da educação, porque hoje as mulheres são mais escolarizadas do que os homens, mas isso ainda não está refletido no mercado de trabalho - e aí entra uma série de outras questões, porque a análise de gênero perpassa diversos temas. Então você tem que olhar não só a inserção dela no mercado de trabalho. Ela está chegando mais escolarizada, então por que o rendimento ainda não está similar? Muito provavelmente ela está escolhendo ocupações que precisam de uma jornada de trabalho mais flexível porque ainda tem a carga de afazeres domésticos extremamente pesada, ainda muito colocada sob responsabilidade das mulheres. Ou a questão da violência, que talvez é a lacuna mais importante aqui no IBGE de estudo, mas que a gente está correndo atrás para suprir.

Na verdade, essa discussão de gênero já estava nos Objetivos do Milênio. Já tinha um objetivo específico sobre desigualdade de gênero, mas era mais voltado para a educação, e quando a gente fez o Relatório Brasil a gente adaptou para a desigualdade de gênero no mercado de trabalho, que é o caso do Brasil. E no ODS veio perpassando seus diversos temas, que é o papel da mulher na tomada de decisão: quantas mulheres deputadas, senadoras, juízas, empresárias, donas de empresas. O papel da mulher na participação político-social, as questões ligadas à saúde sexual e reprodutiva.

A gente agora está planejando a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), que vamos fazer junto com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Nessa investigação sobre saúde sexual e reprodutiva com foco nas mulheres em idade reprodutiva, vamos perguntar sobre violência doméstica. A gente está tentando fazer uma análise de forma integrada todos esses temas. E o sistema de indicadores dos ODS veio impulsionar, porque o Brasil vai ter que dar respostas para uma série de indicadores que estão ali colocados. Muitos ainda nem estão bem definidos. A gente tem que estar preparada para dar essas respostas.

Revista Retratos - Diante de tantos temas, qual seria o maior desafio?

Bárbara Cobo Soares - Eu acho que é você ter essa análise integrada. Você só resolve desigualdades no mercado de trabalho se tiver uma política integrada, por exemplo, de creche, porque a gente sabe que um dos maiores fatores para as mulheres saírem da escola ou do sistema formal escolar ou de emprego é você ter que cuidar de casa, afazeres domésticos. Quando a gente observa, por exemplo, a distribuição por sexo dos cargos de direção, tem muito mais homens do que mulheres. É o que as pessoas chamam de “teto de vidro”: as mulheres veem aonde querem chegar mas uma barreira impede que elas cheguem. Tem pessoas que não dão cargos ou empregos porque a mulher pode engravidar e ter que sair por um determinado tempo, por causa da licença-maternidade, depois tem que cuidar da criança. Então se isso fosse mais dividido, mais equitativo, essa distribuição de tarefas entre homens e mulheres, isso seria uma forma mais consistente de combater essas desigualdades.

Revista Retratos - Você poderia explicar melhor o que é o conceito de “teto de vidro"?

Bárbara Cobo Soares - É como se fosse uma barreira invisível. A mulher está escolarizada, está preparada, é mais do que provado que ela tem competência. A ideia do vidro é que ela vê os lugares mais altos pelo teto de vidro, mas não consegue passar por ele. Principalmente por preconceito. Vários países europeus conseguiram diminuir a desigualdade com a licença maternidade e paternidade compartilhada: o casal tem dois anos. Na hora de empregar alguém, isso não vai pesar, porque tanto o homem quanto a mulher podem sair para cuidar da criança. Isso resolveu uma parte dessa questão. Mas tem outras. As questões de gênero são, de certa forma, recente. A gente demorou muito para poder votar, para poder trabalhar. A gente tem filmes maravilhosos que mostram o quanto a gente teve que correr atrás e batalhar para ter os mesmos direitos. Agora a gente tem que ter o exercício desses direitos. Não adianta estar só na lei, tem que exercer. Aí acho que nossos indicadores tentam mostrar isso. Ainda tem um caminho a percorrer nesse sentido.

Revista Retratos - Como pensar as relações entre dados quantificados e percepções culturais?

Bárbara Cobo Soares - Aí vem a importância de ter uma área como a gerência de Indicadores Sociais. Porque é uma área que não tem uma pesquisa específica, mas você precisa ter uma carga de leitura para entender o que está colocado, porque só o dado bruto que vem da pesquisa vai te dar uma desagregação por sexo, mas você tem que entender esses papéis socialmente esperados que cada sexo desempenha na sociedade. Então você tem que ter uma leitura da história: por que é esperado que as mulheres cuidem das crianças, ou troquem fraldas? Às vezes é tão endógeno que não percebe. Você não tem fraldário dentro de banheiro masculino. É esperado que a filha mulher cuide dos pais – agora a população está envelhecendo, então você tem não só o cuidado com as crianças mas também com as pessoas mais velhas e com deficiência e isso fatalmente recai sobre as mulheres.

A gente sabe dos papéis esperados. Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C), por exemplo: quando a gente vai olhar o número de horas dedicados a afazeres domésticos e cuidados para homens e mulheres, corrobora isso que a gente fala: os homens continuam com as suas dez horas semanais de afazeres e cuidados e as mulheres têm 22, 23 horas. Quando você vai para a ocupação formal, no mercado de trabalho, eles têm mais horas do que as mulheres. Isso corrobora aquilo que a gente pensa: as mulheres acabam procurando jornadas mais flexíveis, muitas vezes precisa ser informal, não pode ser as oito horas porque a criança só tem um turno na escola. Você vê taxas de participação diferentes no mercado de trabalho. Pelos mesmos motivos.

Quando a gente vai olhar, por exemplo, essa geração que nem estuda nem trabalha, os “nem/nem”, você vê que não é 20% de pessoas que não fazem “nada”. A gente foi estudar esses dados para fazer um perfil dessas pessoas. E aí quem não estudava no sistema formal de ensino e também não trabalhava ou procurava emprego eram fundamentalmente meninas, jovens, com filhos. Fazendo afazeres domésticos. Então não é que não estavam fazendo nada. Elas não têm como retornar à escola ou ao mercado de trabalho, porque ainda têm uma escolha a fazer, você tem que fazer uma conta também: será que vale a pena voltar para o mercado de trabalho, ganhar pouco e ainda ter que pagar alguém para olhar a criança? Se você não tiver esse olhar integrado, essa bagagem de estudo – e aí quando você monta o questionário você pensa um pouco nisso: o que eu quero saber de informação?

Revista Retratos - Como fazer isso levando em consideração essas diferenças?

Bárbara Cobo Soares - O ideal seria ter uma pesquisa de uso do tempo regular e a gente está batalhando para que isto aconteça. Na Pnad, a gente pega a jornada de afazeres e cuidados. Mas a gente não consegue pegar atividades simultâneas. Muitas vezes a mulher está cozinhando e olhando a criança, fazendo duas tarefas ao mesmo tempo. Isso na pesquisa de tempo você consegue captar.  Então quando a gente vai montar o questionário a gente sabe que é importante. A gente sabe que questionário grande é complicado, que fica muito tempo na casa da pessoa, mas tem que investigar afazeres domésticos e cuidados, não tem como.

Se tiver alguma redução no número de horas de cuidados e afazeres domésticos da mulher, mas o do homem não muda, fatalmente ela está empregando outra mulher para fazer o que ela não está conseguindo fazer: uma empregada, uma babá, deixando com uma avó. Estruturalmente, você não vê grandes mudanças nesse sentido. A gente continua com todas as obrigações de cuidar da casa, dos afazeres, nas costas das mulheres. Isso tem uma influência monstra nas condições de vida delas.

Por exemplo, na Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), que vai a todas as prefeituras, a gente tem um bloco sobre políticas de gênero em que a gente perguntou sobre a delegacia da mulher, se tem centros de atendimento para mulheres em situação de vulnerabilidade, qual tipo de política de gênero está sendo implementada no município. Isso tudo para ir montando um grande quebra-cabeças para entender onde estão os gargalos e apontar. Porque a gente aponta, faz diagnósticos. A complexidade do gênero é porque é transversal, perpassa diversos temas.

Revista Retratos - É possível falar de gênero sem falar de cor ou raça ou classe social?

Bárbara Cobo Soares - A gente tem que falar, não tem como não falar. Na desagregação, sempre que possível, a gente coloca uma diferenciação por faixa de renda, por cor ou raça, porque isto importa. Isto faz diferença mesmo dentro do grupo das mulheres. As mulheres não são um grupo homogêneo, tem diferenciações importantes entre elas. Quando a gente vai olhar os indicadores, inexoravelmente as mulheres pretas ou pardas são as que estão em piores condições nos indicadores de renda, acesso a saneamento, mercado de trabalho, escolaridade.

Revista Retratos - Como reconhecer e valorizar o trabalho doméstico?

Bárbara Cobo Soares - Tem alguns países que fazem até contas-satélites, dentro das contas nacionais, uma conta separada para tentar quantificar o valor desses trabalhos. Como se tentasse estimar o valor. Na PNAD Contínua a gente começou a fazer uma coisa interessante que foi listar o que são afazeres domésticos. Por exemplo: hoje eu demorei uns vinte minutos só conversando com a pessoa que trabalha para mim sobre o que que a gente ia fazer de comida, o que vai ter no fim de semana – isso é trabalho doméstico, é uma carga de trabalho que as vezes a pessoa não encara como trabalho, mas também é. Eu perdi vinte minutos planejando mercado, lista de compras, decidindo, então parece que afazer doméstico é só pegar a vassoura e varrer a casa mas não é. Tem outras coisas que têm que ser levadas em consideração.  Isso na Pnad Contínua já melhorou bastante a captação. A ideia é tentar aprofundar isso.  O que a gente quer é que mostrando, estimulando a discussão, a gente possa talvez induzir a uma mudança de comportamento. A gente vê algumas mudanças, mas você ainda vê discursos em que se espera que a mulher faça tudo.

Revista Retratos - Pode citar exemplos do que o IBGE já está fazendo, tendo em vista o ODS 5?

Bárbara Cobo Soares - A gente já tinha Síntese de Indicadores Sociais, com análises de gênero em diversos capítulos. A gente fez o Sistema Nacional de Indicadores de Gênero (Snig), com dados de Censos, com mapas por município, que mostra nos diversos temas que o Censo investigou como está a questão da desigualdade de gênero.

Alguns indicadores a gente já produz regularmente, outros nem tanto. A gente está fazendo agora a PNDS. A parte de violência a gente está colocando alguma coisa na PNDS, na Pnad Contínua; estamos negociando ainda a possibilidade de parceria com o CNJ para fazer uma pesquisa de vitimização. A gente teve, durante um tempo, um grupo de estudo sobre gênero e uso do tempo no governo federal, com a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Ipea, ONU Mulheres. Eu faço parte do IAEG (Interagency Expert Group), um grupo de expertos de interagências da ONU que trata das questões de gênero e uso do tempo, para a gente ir acompanhando. Eles têm um conjunto mínimo de indicadores de gênero que a gente está revisando agora à luz dos ODS e pensando em lançar ano que vem e fazer esse conjunto mínimo de indicadores de uma forma regular. Estamos trabalhando nesse sentido.

Revista Retratos - Como você avalia o diálogo do IBGE com a sociedade e movimentos sociais, no que tange aos temas de gênero?

Bárbara Cobo Soares - Eu procuro participar sempre que posso de seminários e oriento minha equipe aqui também. Eu brinco que a gente tem que dar a cara a tapa, porque a gente faz análises, então tem que mostrar os resultados, tem que ver se está fazendo sentido. Acho que a discussão do IBGE com a sociedade pode ser intensificada, pode se ampliar, a gente pode fazer fóruns. Em geral a gente fica muito voltado para produtores de informação, para usuários. Eu dou aula numa pós-graduação na UFRJ e sinto que muita gente não tem noção das fontes que o IBGE tem. É porque a gente não tem tempo, mas o ideal seria a gente ir mais às universidades, ir mais aos fóruns, seminários, para mostrar o que a gente tem, ouvir o feedback das pessoas que trabalham com isso.

Revista Retratos - Quando a gente chama determinada violência de “violência doméstica”, o que muda?

Bárbara Cobo Soares - O IBGE dá publicidade àquilo que a gente tem vigente em lei, respeitando normatizações. O que mudou foi a visibilidade, as mulheres estão entendendo que, na verdade, tem mulheres que sofrem violências que nem entendem que são violências. Tanto que a gente está tendo esse cuidado de especificar no questionário o que é violência. Tem a violência sexual, a física e a emocional. E aí, nesse contato com os movimentos, as pessoas que estão ali na ponta, como as assistentes sociais cuidando das mulheres, você vê que a pessoa nem entende aquilo como violência, é “coisa de casal”. Então, quando você dá visibilidade aos dados, você tem que fazer as pessoas pensarem. A gente tem nossas limitações, por isso acho que todo mundo tem seu papel, os movimentos, as universidades, que são menos amarrados e podem fazer pesquisas com grupos focais, por exemplo, uma discussão mais rica, coisa que a gente ainda não tem perna para fazer. O que a gente busca é: atenção ao que está colocado nacionalmente (em termos de legislação, políticas), as recomendações internacionais, os metadados dos indicadores e o que a gente pode fazer com nossas pesquisas de campo, como a Pnad, a POF, a PNDS e a PNS.