Agricultura familiar orgânica no Rio de Janeiro valoriza alimentação saudável
04/12/2017 09h00 | Atualizado em 18/10/2019 17h16
O Censo Agro 2017 já está em seu terceiro mês de coleta. A pesquisa mostrará um retrato dos estabelecimentos agropecuários que, no caso do estado do Rio de Janeiro, são predominantemente produtores de lavouras temporárias, criação de bovinos e horticultura.
A pecuária e lavoura de cana são mais fortes no Norte do estado, onde a área colhida de cana-de-açúcar chegou a 48 mil hectares, em 2016, segundo a Pesquisa Agrícola Municipal, bem como 660 mil cabeças de gado, pela Pesquisa Pecuária Municipal (ambas do IBGE). A horticultura, por sua vez, tem grande incidência, principalmente na região serrana do Rio, onde o clima é mais frio e chuvoso.
Geralmente são os pequenos produtores que cultivam uma grande variedade de culturas na horta, tanto para subsistência quanto para comercialização em feiras. De acordo com o último Censo Agro, em 2006, a produção de horticultura, principalmente tomate e alface, era grande no conjunto de cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Bom Jardim, Cantagalo, Carmo, Cordeiro e Duas Barras, que compõem a região serrana, chegando à soma de quase 15 mil toneladas. Este tipo de agricultura continua crescendo no Rio, apesar da tragédia climática que deixou, em janeiro de 2011, milhares de desabrigados e milhões em prejuízo nas cidades locais.
Foi o caso da família dos agricultores Manoel Luiz Ventura e Ilza de Souza Ventura, que perderam quase tudo nas chuvas de 2011: horta, lavoura, criação de porco, galinha e cabrito. Eles vivem há 32 anos no Sítio Boa Ventura, que possui 10 hectares dentro do assentamento Fazenda Alpina, bairro de Santa Rita, município de Teresópolis. O assentamento pertence hoje a 92 famílias: os Ventura conseguiram se reerguer depois da tragédia graças ao apoio do Programa Rio Rural Emergencial, sendo assessorados até hoje pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio de Janeiro (Emater–Rio).
Em 2011, o casal precisou a se abrigar na fazenda dos irmãos de Ilza, em Serra Capim, e só puderam voltar ao assentamento em 2012. Outros casos, porém, não tiveram a mesma sorte, pois algumas áreas do assentamento foram consideradas condenadas.
A agricultura familiar e o problema das novas gerações
Desde o último Censo Agro, o IBGE contabiliza os estabelecimentos familiares, de acordo com a Lei Nº11.326, de 24 de julho de 2006. O agricultor precisa atender a um conjunto de critérios para ser enquadrado dentro da definição legal de agricultura familiar, o que o possibilita acessar políticas públicas criadas para o setor – como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), que já é listado no item de Financiamento no questionário do Censo Agro 2017.
Os dados de 2006 levantaram que no Brasil havia 4.367.902 estabelecimentos de agricultura familiar, que representam 84,4% do total das propriedades com produção agropecuária, mas ocupam apenas 24,3% das terras.
Seu Luiz, 60 anos, trabalha no campo desde os 15 e tem dois filhos com Ilza. Hoje com 32 e 35 anos, os filhos do casal já trabalharam como agricultores, mas têm passado mais tempo na cidade. Um deles, Henrique, vai apenas duas vezes por semana ao sítio dos pais. Luiz considera o volume de trabalho pesado para o casal, que não possui empregados e produz, dentre muitos alimentos: seis tipos de alface e dois tipos de brócolis, além de repolho, rúcula, alecrim, hortelã, capim-limão, sálvia, tomilho, manjericão, couve, frutas e ovos de galinha caipira. A família também é guardiã de sementes crioulas de ervilha e de milho – sementes nativas livres de processos industriais, repassadas de geração em geração. Ilza afirma, porém, não ver muita esperança na continuidade da agricultura na família. “Os jovens que nascem na lavoura vão desistindo. Eles veem a nossa dificuldade, e a renda é muito pouca”, lamenta.
“Fui intoxicado por veneno”
A família Ventura produz, desde 2012, apenas orgânicos em sua horta. Uma das razões foi a grave condição médica adquirida por Luiz com ainda 23 anos, por conta do uso do DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano), um dos primeiros inseticidas comercializados: “Eu bombava e Ilza pulverizava. Passei a ter falta de ar”. A intoxicação afetou mais tarde os rins e causou uma grave infecção urinária, e o agricultor teve de deixar o campo nos meses em que ficou internado no hospital. “Depois disso, a comida orgânica, sem veneno, foi minha cura”, diz ele. “Acho que se eu continuasse [com o uso de agrotóxicos], já teria morrido”.
A família foi orientada pela agrônoma Monique Lopes, da Emater – Rio, a cultivar sua horta sem uso de defensivos (nome designado aos agrotóxicos). Monique explica que a pequena criação dos animais no sítio é complementar à agricultura orgânica, pois os porcos, galinhas e cabritos da família Ventura geram adubo para o solo. A produção deles demorou 18 meses para conseguir receber a certificação oficial de alimentos orgânicos.
Feiras solidárias são fundamentais para pequeno produtor
Um dos principais problemas para os agricultores familiares é a logística de transporte de sua produção, pois geralmente as propriedades são de difícil acesso e os agricultores nem sempre possuem veículos próprios. Luiz só conseguiu comprar um carro depois de 40 anos de lavoura. Ele tinha uma dívida que conseguiu renegociou e só então teve acesso ao PRONAF. Antes, o sítio chegava a perder quase 80% de sua produção, e ainda hoje eles afirmam que ainda perdem cerca de 40%.
Luiz estabelece na feira uma relação de confiança com os compradores, e se compromete até com a saúde deles. Muitas vezes, o agricultor leva ervas medicinais para ajudar pessoas que têm parentes doentes, ou colhe beterraba, couve e salsa orgânicos antes da época, especialmente para um cliente que precise. “Eu não estou preocupado com dinheiro. Eu não conto dinheiro na feira. Quando chego em casa é que vou ver se sobrou alguma coisa pra mim. Dificilmente sobra”, comenta Luiz. Apesar disso, declara ter prazer no trabalho de disseminação dos alimentos orgânicos: “Aonde eu passo eu deixo uma semente. E onde eu deixo, dão muitos frutos”.
A luta da mulher na agricultura familiar
Ilza vem da terceira geração de agricultores de sua família, proveniente da Serra do Capim, e se alfabetizou em casa. Além de trabalhar na roça, ainda cozinha e faz os serviços domésticos. “A gente não tem dia, não tem hora, não tem feriado”, explica a mãe trabalhadora. No Censo Agro de 2006, a maioria dos trabalhadores na agricultura familiar no Brasil ainda eram homens (2/3), mas o número de mulheres ocupadas também era expressivo: 4,1 milhões de mulheres (1/3 dos ocupados). Já na direção dos estabelecimentos, os familiares tinham proporção maior de mulheres em comparação com os não-familiares: mais de 600 mil familiares (13,7%) eram dirigidos por mulheres em 2006, enquanto que na agricultura não familiar não chegava a 7%.
A agricultora Ilza, por algumas vezes, teve que trabalhar fora da lavoura também, para garantir o sustento da família. Conta que isso ocorreu em dois períodos, um quando ela tinha cerca de 20 anos, e outro aos 40, quando teve de trabalhar na cidade como doméstica, enquanto o marido produzia no sítio. Ela espera que a agricultura familiar ganhe maior visibilidade e, com isso, que as pessoas passem a valorizar esse trabalho duro: “A gente, o pequeno produtor, fica muito esquecido”, lamenta.