No Rio, Censo Agro coleta dados da agricultura quilombola
19/02/2018 09h00 | Atualizado em 24/01/2020 13h57
A equipe de coleta do Censo Agropecuário no município do Rio de Janeiro visitou, entre 18 de janeiro e 2 de fevereiro, várias famílias quilombolas que vivem e produzem itens agrícolas, no Parque Estadual da Pedra Branca, no bairro de Vargem Grande, zona oeste da cidade. A unidade de conservação é o território da comunidade quilombola Cafundá Astrogilda, que nasceu há mais de dois séculos, mas apenas em 2014 foi reconhecida como quilombo pela Fundação Palmares, instituição pública federal voltada para identificação e promoção da arte e cultura afro-brasileira.
Derivado de "cafundó", Cafundá é o nome do caminho que leva à comunidade, e significa lugar distante, ermo. Já Astrogilda é o nome da matriarca que coordenou um centro de umbanda muito importante para a comunidade entre os anos 1934 e 1962, junto a seu companheiro Celso dos Santos Mesquita. No local, pratica-se agricultura familiar e criação de animais, a maioria para própria subsistência.
Até a visita do IBGE, alguns quilombolas não sabiam que seriam considerados agricultores no Censo Agro. As famílias são remanescentes de ex-escravos que trabalhavam em uma fazenda de café atrás do Morro Redondo. Com a abolição da escravatura, os trabalhadores negociaram seu trabalho com os donos da fazenda em troca de moradia, e seus descendentes passaram a plantar na região, obtendo os títulos das terras quando já não havia mais fazenda. Dado o histórico, todos do Cafundá Astrogilda fazem parte da mesma árvore genealógica. Hoje são sete núcleos familiares, totalizando cerca de 200 pessoas.
Dados do Censo Agro podem fortalecer agroecologia
Cada núcleo familiar possui um representante na Associação dos Moradores e Remanescentes do Quilombo de Vargem Grande. A associação faz diversos trabalhos, entre eles busca parceria com universidades e melhorias para a comunidade e seu entorno. Esse é um dos motivos pelos quais a comunidade recebeu tão bem o IBGE, com a expectativa de que a colaboração com a pesquisa possa levar benefícios aos povos tradicionais e fortalecer seu trabalho, que, além de agroecológico, é cultural e histórico.
Pedro dos Santos Mesquita, 57 anos, um dos agricultores da comunidade, é o único que vende sua produção de bananas para merenda escolar através do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). "Tem cacho de banana que pesa mais de 20kg", diz ele, que se orgulha de ser produtor orgânico, mas ainda não possui a certificação oficial. Ele conta já ter sido difícil tirar a documentação de lavrador, pois precisou várias vezes "descer para a cidade" correndo atrás do sindicato dos trabalhadores rurais. Segundo ele, a certificação de produto orgânico é ainda mais difícil.
Pedro é considerado um desbravador que teve papel muito importante para incentivar os pequenos agricultores de Vargem Grande. Foi dele a iniciativa de construir o caminho para permitir a passagem de carros desde a estrada Cleodon Furtado até o Cafundá, com fins de escoar as produções agrícolas. Conta que, por abrir o caminho na época da ditadura, chegou a ser preso pelo regime militar. Pedro estudou em casa, pois sua mãe montou uma escolinha e alfabetizou muitas das crianças na comunidade. Hoje, além de agricultor, é feirante na região.
Integração entre campo e cidade
Os moradores desenvolvem vários projetos sociais no Quilombo Cafundá Astrogilda, visando promover maior integração entre campo e cidade. O Projeto "Ação Griô – Aula de Campo" é exemplo disso, e tem como objetivo trazer alunos das escolas públicas e universidades para um dia de aula de campo no quilombo: uma visita guiada, segundo eles pedagógica e multidisciplinar. Griô, palavra de tradição africana para designar mestres de saberes culturais, é muitas vezes utilizada em quilombos para homenagear seus ancestrais. "Eles [os Griôs] detém um conhecimento que não está nos livros", afirma Sandro da Silva Santos, 44, um dos netos de Dona Astrogilda.
Também foi montado, em 2015, o museu Cafundá Astrogilda, graças ao edital da prefeitura Rio 450: Ações Locais. A iniciativa é do núcleo familiar Santos Mesquita, com o objetivo de resgatar memórias e trajetórias através da exposição de artefatos do antigo terreiro, além das histórias do preto velho, um guia espiritual conhecido como Pai Tertuliano, que se tornou referência em todo o bairro Vargem Grande. Os saberes locais botânicos e homeopáticos transmitidos por Celso Mesquita, famoso pelas “garrafadas” artesanais, e as rezas de Astrogilda também são resguardados pela família.
Sandro diz que "uma das coisas mais valiosas que temos aqui é a estrutura social". Ele conta que, embora a unidade de conservação tenha sido criada pelo governo em 1974, no processo não houve diálogo com a comunidade, mas, apesar disso, o protagonismo em prol do meio ambiente e estruturação do parque sempre foi dos moradores do quilombo.
Grupo de trabalho de povos e comunidades tradicionais
O IBGE está buscando representar cada vez melhor os chamados povos tradicionais, das quais fazem parte as comunidades quilombolas. Uma das ações nesse sentido foi a criação do Grupo de Trabalho (GT) de Povos e Comunidades Tradicionais. De acordo com a antropóloga e pesquisadora do IBGE, Marta Antunes, “no Censo Agropecuário, as comunidades quilombolas, independente de reconhecidas pela Palmares, podem ser identificadas como tal no quesito de localidade [dentro do questionário]”. Segundo ela, os quilombos já cadastrados na base territorial do IBGE também podem ser localizados por GPS (georreferenciamento).
No ano passado, o GT reuniu-se com especialistas nas temáticas indígena e quilombola, apresentando propostas metodológicas para a representação espacial de comunidades tradicionais. Este ano, o Grupo planeja implementar as inovações conceituais na base territorial do IBGE, além de sensibilizar e capacitar técnicos do instituto para o planejamento e coleta em áreas de povos e comunidades tradicionais.