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Revista Retratos

Yanomami - Fragmentos de um diário de campo

Editoria: Revista Retratos | Marta Antunes (relato de campo) e Marília Loschi

26/12/2018 16h15 | Atualizado em 26/12/2018 16h19

Responsável pelo Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE, a antropóloga Marta Antunes acompanhou a equipe do Censo Agropecuário no recenseamento nos setores indígenas do município de Alto Alegre, em Roraima. O trabalho: propor adaptações metodológicas para que indígenas de recente contato compreendessem os conceitos do questionário e, com isso, identificar boas práticas e lições apreendidas para o Censo Demográfico 2020, já em fase de planejamento e testes. A viagem foi registrada num diário de campo que Marta compartilhou com a revista Retratos

“Essas missões foram um festival de superação de medos, atravessando pontes finas de madeira agarrada nas mãos de algum Yanomami (mulher, criança, homem), descendo serras firmando a bota nos degraus cavados no barro onde um terço de meu pé ficava de fora e procurando de novo as mãos de um Yanomami para garantir minha segurança, viajando de helicóptero pela primeira vez na vida, sobrevoando a floresta amazônica num avião com o piloto avisando para apertar os cintos que entraríamos numa zona de turbulência, vencendo cachoeiras na subida e na descida do rio tentando manter seco o dispositivo móvel de coleta com as entrevistas de toda a missão. Não deu nem tempo de pensar em cobras, escorpiões, aranhas e outros animais que poderíamos encontrar pelo caminho”.

Entrando em campo

A primeira entrada em terras indígenas aconteceu em novembro de 2017, já com fortes emoções no primeiro dia.

“Foram seis horas de carro de Boa Vista até o ‘Sítio 14’ onde pernoitamos ao relento, nas nossas redes, perto do Rio Mucajaí, no alpendre de uma casa restaurante, com banheiro improvisado de estacas de madeira e plástico preto. Medo e frio sintetizam essa primeira noite. No dia seguinte saímos bem cedo para a beira do rio onde descemos nossa canoa e para onde passamos nossas mochilas, nossa comida e a gasolina que duraria toda a nossa viagem – eram muitos, muitos galões de 20 litros de gasolina”.

Ao fim de menos de uma hora subindo o Rio Mucajaí, ela anota no diário de campo:

 “Acabamos de perder a hélice do motor de nossa voadeira (...) e estamos usando a nossa ÚNICA hélice reserva. Uau!” (23/11/2017)

Negociações

No polo base Pewaú, a equipe seguiu a rotina de avisar a equipe da Sesai de sua presença na área e pediram que avisassem as lideranças indígenas. Explicavam a todos o que era o IBGE e o trabalho que iriam fazer na região:

“Depois de mais de uma hora de informação e negociação, em que as lideranças indígenas se mostravam desconfiadas com nossa presença, pediram para ver material impresso oficial, porque 'branco mente muito'. O impasse tenso foi quebrado quando mostramos o Dispositivo Móvel de Coleta (DMC) funcionando e o manual do recenseador com o nome IBGE”.

O procedimento de consultar as lideranças para obter autorização se repetiu em todas as comunidades indígenas; os tempos variaram entre alguns minutos e cerca de três horas. Na segunda missão, a equipe contou com guias indígenas Yanomami, o que otimizou a negociação inicial.

 “A presença dos guias Yanomamis [na segunda missão] foi essencial, pois além da comunicação (...), na grande maioria das vezes, eles atuavam como guias e facilitadores no processo de negociação para a realização do Censo. A presença de Ioke Yanomami e de Raul Yanomami como guias-intérpretes permitiu encurtar muito o tempo de negociação quando comparado com a primeira missão entre os Xirixana”.

 “Se na primeira missão o principal meio de transporte foi uma canoa de alumínio de 8 metros, com um motor de 40 cv, na segunda missão a maioria das horas de locomoção entre as aldeias era realizada de xapi-xapi, complementada por alguns minutos de voo diários de bouru-bouru. Só depois de uma hora caminhando pela floresta amazônica tentando me desviar de tocos, pedras e galhos de árvores é que percebi que xapi-xapi é uma onomatopeia do som do chinelo batendo no calcanhar de quem caminha (ou do nosso peso comprimindo as folhas e areia sobre o solo), e só depois de algumas horas de espera que entendi que bouru-bouru era o barulho que se escutava do helicóptero se aproximando da aldeia”.

 “Conseguir identificar algumas palavras que ajudem a monitorar a atividade de tradução também é importante, embora possa ser difícil. No caso do Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola, aprender o nome das principais culturas produzidas e extraídas nos ajudava a estabelecer um estímulo a resposta, como era o caso da palavra ‘naxicoco’ que significa ‘mandioca’ em Yanomami.”

Apoios

O contato com o pessoal da Sesai e da Funai nas duas missões foi essencial para planejar a missão, com informações mais precisas sobre localização das comunidades/aldeias indígenas (inclusive as que se mudaram devido a conflitos), melhores meios de transporte, tempo de deslocamento e especificidades culturais.

 “O uso dos postos da Sesai é essencial para o sucesso da missão, sem eles ficaria impossível ficar tanto tempo em campo. Neles cozinhamos, dormimos e nalguns casos usamos banheiro, interno ou externo, para banho e necessidades, noutros o banho é no rio. É nos postos que carregamos os DMCs também, as vezes na bateria do rádio, graças a alguns cabos que nos foram emprestados. É também nos postos, igarapés ou no rio que lavamos nossas roupas”.

 “Tivemos acesso aos registros administrativos de quantidade de famílias, dos nomes e datas de nascimento, uma vez que nossos informantes tinham dificuldade com a informação de idade e nem sempre estavam com seus documentos perto, assim como por conta de uma particularidade dos Yanomami que é a de não falar o seu nome. Além disso, muitas crianças não têm nome até certa idade, o que dificulta um processo de recenseamento. (...) Um cuidado importante é de confirmar se todos aqueles que morreram tiveram seu nome retirado da lista, porque falar o nome dos que faleceram para um Yanomami é uma ofensa e pode acabar com a possibilidade de interação em uma aldeia inteira”.

 “Na primeira missão minha equipe era composta apenas por homens [apesar de Marta ter solicitado uma recenseadora ou supervisora, foi informada de que nenhuma mulher de Alto Alegre tinha se interessado]. Na segunda missão eu pude escolher os recenseadores. Foi importantíssima a presença de uma mulher em cada equipe para a interação com as mulheres das aldeias, que ocorreu de forma diferenciada da primeira missão e possibilitou perguntas demográficas como as de fecundidade”.

 “Nos tempos entre o fim do recenseamento e a espera pelo bouru-bouru as mulheres, as adolescentes e as crianças se aproximavam e começavam a interagir, mesmo sem falar a mesma língua. As primeiras perguntas giravam em torno de se eu era mãe e se estava com kurumim (criança) na barriga, além de tentarem entender o que eu tinha cobrindo meus peitos. Elas não entendiam para que eu usava tanta roupa e riam muito tentando ver como era meu corpo por baixo de tanto pano, sentindo o meu cheiro, explorando as texturas dos tecidos e pedindo para ensinar palavras em português, que repetiam com maestria”.

“Fecho estes fragmentos de meus cadernos de campo com uma expressão Yanomami que é ‘totihi mahi’ e significa ‘muito legal’, pois ela sintetiza a experiência de estar entre e com os Yanomami nessas duas missões”.